Há várias palavras que expressam a noção de “eu” no yoga. As duas mais presentes são “ahamkara” e “asmita”, porém apenas a segunda aparece no Yogasutra (texto de maior autoridade no Yoga).
A noção de “eu” é algo intrigante, olho para fora
e tenho que lidar com esta insistente, e de certa forma legítima, experiência
de que sou o centro do mundo. Asmita é aquela esfera em nós que reconhece uma
continuidade nas várias experiências e que identifica essa continuidade como
sendo “eu”. Aquele que ontem estava feliz é reconhecido como sendo a mesma
pessoa que hoje acordou mal-humorado. Ele identifica, experiencialmente, que a
mudança de humor é um movimento dentro do mesmo ser humano.
Junto com a noção de “eu” nasce a noção do
“outro” ou seja, do “não-eu”. Nasce a diferença, nasce o isolamento. Eu sou
isto, eu não sou aquilo. Tudo o que está do lado de fora do meu corpo e tudo o
que pode ser apreciado por mim passa a ser o “não-eu”. O “não-eu” se torna uma
entidade, um “alguém” com quem nos relacionamos. A partir de nossos desejos, de
nossas frustrações e medos, vamos moldando nele uma espécie de personalidade.
Criamos uma personalidade para o “não-eu”. Apesar de ela ser, na verdade, um
fantasma criado por nosso “eu”, não reconhecemos esse fato. Acabamos por
acreditar que o fantasma que criamos é real e passamos a nos relacionar com o
mundo a partir dessa percepção inconsciente que construímos. Essa
personificação do “não-eu” ocorre a partir de nossas memórias e de nossas
tendências. Raramente percebemos que nossa forma de se relacionar com ele é
diferente da forma como a pessoa que está ao nosso lado estabelece essa mesma
relação. Não há dois seres humanos que se relacionem da mesma forma com o
“não-eu”, pois também não existem dois “eus” iguais.
Cada um de nós está preso a uma identidade de
“eu” e, conseqüentemente, a uma identidade de “não-eu”. As duas, obviamente,
são inseparáveis e, também, extremamente frágeis e limitadas.
-Questões básicas sobre o “eu”-
Essa prisão a uma identidade individual
(eu) ocorre devido à nossa estrutura mental. A mente é feita de memórias,
marcas e tendências. É isso que nos permite sobreviver e é isso que também nos
escraviza. A mente, no exercício de sua função, nos conduz facilmente ao vício,
ao hábito, à familiarização. Do ponto de vista do yoga somos todos viciados.
Preferimos nos segurar a algo conhecido, mesmo que hoje o conhecido, na
verdade, já não exista mais. Eis o problema. A mente é mesquinha, tem certas
razões para isso, mas é viciada nisso. A mente quer poupar, ela sempre fará o
possível para seguir o caminho já conhecido e, se possível, irá torná-lo
automático. Mas o conhecido só existe agora, uma vez que sofre inevitáveis
mudanças na passagem do tempo.
Além disso, a própria mente (que fixou uma identidade
ao objeto conhecido) também sofre inevitáveis mudanças (pois sem movimento e
mudança não existe mente ativa). Mas o simples fato de reconhecermos essa
realidade não nos livra completamente do problema, precisamos quebrar a
experiência de prisão. Práticas de conscientização corporal, técnicas de
profunda sensibilização da respiração e exercícios que nos levam a experienciar
estados mentais menos emaranhados são importantes vivências rumo a uma
percepção mais profunda das frágeis identidades internas e externas às quais
nos fixamos.
Um ser humano totalmente habituado à sua
perturbação e às suas fixações não se reconhece perturbado. Portanto, a
construção de uma relação equilibrada com o mundo à volta, cuidados básicos
para com a própria saúde física e mental e práticas de asana e pranayama serão
o fundamento para acessarmos o equilíbrio e a clareza que, normalmente, não
conhecemos em nosso cotidiano.
-Olhando com mais atenção para o “não-eu”-
Podemos enxergar a quantidade de desejos e
insatisfações que se apresentam em nossos pensamentos cotidianos. Nossa
confusão básica está em acreditarmos que o mundo à volta existe para suprir
meus desejos. Olho para ele como o objeto de meu desfrute. Quando isso não se
concretiza, reajo, considero injusto. Ao invés de identificar meu engano, pois
não há satisfação no mundo externo que seja permanente, me frustro e traço uma
nova estratégia para que o mundo supra minha carência. Mas ele jamais poderá me
satisfazer, não é sua função e nem sua natureza permite isso.
Pois essas minhas expectativas, muitas vezes,
frustradas, esses meus medos, geraram, ao longo do tempo, um sentimento
particular com relação ao mundo. Em minhas experiências acumulei alegrias e
frustrações em diferentes graus. Isso tudo gerou memórias, marcas. Ao olhar
para fora, as lembranças começaram a povoar minhas emoções e pensamentos, a
expectativa e o medo começaram a se tornar cada vez mais reais, mais presentes.
O tempo foi fazendo com que eu me habituasse a essas sensações e passei, assim,
a não mais reconhecê-las como criadas por minhas próprias memórias. Fui
esquecendo que eu mesmo o inventei, de que essa visão do mundo externo foi
gerada, na verdade, por memórias selecionadas a partir de experiências minhas,
internas, subjetivas. O mundo não é isso que eu sinto apenas, minha percepção
de mundo é extremamente viciada e restrita.
E como limpar esse material acumulado? Como
estar aberto para perceber mais do que minhas memórias sugerem? Além das
práticas citadas no parágrafo anterior a respeito do “eu”, há uma prática que
remete mais diretamente ao “não-eu”, essa prática pode ser chamada de
“devoção”. Essa prática é vista pelo Yoga com grande respeito e reverência,
pois pode ser um veículo para um amadurecimento muito profundo, libertador.
Alguns outros sistemas também apresentam o papel
da devoção, que pode ser analisada dentro dessa perspectiva da minha relação
com o “não-eu”. Mesmo aqueles que não compartilham de crenças religiosas não
podem negar a importante contribuição que a devoção pode oferecer no
desenvolvimento de uma relação mais saudável com o mundo. Obviamente que, ao
tratar de devoção, precisamos chegar a um consenso a respeito do que estou
chamando, aqui, de “devoto”. Uso essa palavra para designar aquele que
reverencia algo que não é “eu”, algo que personifica o “não-eu”. Em minha
posição de devoto ofereço “sacralidade” ao “não-eu” e não mais consigo olhar o
“não-eu” de forma ordinária e superficial, não mais posso reduzir o “não-eu” a
algo que existe com o propósito de apenas saciar minhas expectativas ou
alimentar meus medos. Para o yoga o objeto de devoção é algo que me remete a
uma verdade mais profunda do que aquela que me é mais evidente, algo que
expressa sabedoria completa e que está livre de ignorância e medo. O objeto de
devoção deve representar todo o meu potencial de realização mais íntima.
Ele é visto como “não-eu” porque eu, agora, não consigo me reconhecer como
livre de ignorância, tanto é que eu seguidamente atuo através de minha
ignorância e de meus medos. Eis o papel transformador da devoção. A devoção
direcionada a um “não-eu” apreciado em sua “sacralidade” treina minha visão,
limpa a projeção contaminada pelas minhas mesquinharias. Esse é o início do
caminho. Antes eu olhava para o mundo e o dividia entre o que eu gostava e o
que eu não gostava, mas agora, uma vez tendo adotado a reverência por algo mais
sagrado do que meus desejos e aversões individuais, passo a apreciar o mundo à
minha volta em sua totalidade. Minha alegria passa a não ser mais tão
dependente de desejos supridos ou de vinganças realizadas.
Mas não termina aqui. O propósito é fazer com que
eu, a partir dessa apreciação nova, passe a perceber o quanto a minha
experiência anterior de “não-eu” era frágil. O yoga afirma que o fruto da
experiência de bem-estar é o apego e o fruto da experiência de sofrimento é a
aversão. Ou seja, para aquele que busca a verdade, o sofrimento e o prazer não
são tão diferentes assim, pois prazer e sofrimento aprisionam ao mundo externo
da mesma forma. Isso significa que devemos fugir do prazer e do sofrimento?
Não. Precisamos é perceber que há vida além dessa divisão. A satisfação
profunda não está na divisão, não vem de uma ou de outra. É possível nos
sentirmos nutridos independentemente da concretização de experiências que forneçam
sofrimento ou prazer. Podemos estar longe da conquista absoluta disso, mas
definitivamente andar degrau por degrau na escada que conduz a essa
independência traz satisfação, força e alegria, mesmo no meio do caminho. As
pedras que antes apenas me machucavam agora também, por vezes, me ensinam e me
nutrem. Então, não há mais como colocarmos como antagônicas as realizações e as
frustrações.
Jorge Luís Knak
Jorge Luís Knak