quinta-feira, 8 de agosto de 2013

A Experiência Meditativa


 “A prática sem sabedoria é cega. A sabedoria sem prática é fútil.” T. Krishnamacharya
  

A primeira vez que a maioria de nós ouviu a palavra “meditação” foi, provavelmente, a partir do viés indiano ou japonês, alicerçada em tradições como o yoga e o budismo. Porém, se pesquisarmos mais um pouco veremos a meditação sendo usada também em caminhos religiosos como o Judaísmo (método de oração chamado de Hitbodedut, tendo como um dos expoentes o Rabino Nachman) e o Cristianismo (alguns dos religiosos conhecidos que difundiram a meditação cristã são Thomas Merton, Dom John Main, Dom Lawrence Freeman e Jean Yves Leloup) e, de forma não-religiosa, em vários sistemas modernos de exploração da mente e do que é chamado de “autoconhecimento”. A ciência também tem manifestado interesse no assunto e, assim, tem se ocupado de experiências relativas a essa prática. Porém, o limite da ciência é grande no que se refere a essa área. Até a filosofia se apresenta, muitas vezes, bastante resistente a alguns conceitos mais tradicionais dos caminhos meditativos. Daniel Dennett, reconhecido filósofo norte-americano, compara a meditação a vários outros exercícios mentais como a realização de palavras cruzadas e, também, ao sono. Porém, numa perspectiva menos rasa, a meditação é vista, tradicionalmente, como um processo que se diferencia dos outros mecanismos meramente mentais.

Meditação, inicialmente, pode ser vista como um processo de envolvimento da mente com um único objeto. Essa é a porta de entrada. Começamos nos utilizando de uma mente que tem como hábito se relacionar com vários focos num curto espaço de tempo e vamos, aos poucos, direcionando sua atenção a um único objeto previamente escolhido. Da mente que é atraída por uma grande variedade de estímulos sensoriais, passamos a uma mente que toma as rédeas do seu direcionamento e se estabelece no objeto de sua escolha consciente. Da visão apressada e múltipla passamos a uma visão sustentada e única. Eis a base da preparação da capacidade meditativa. Vamos chamar isso de “unidirecionamento horizontal”, onde optamos por proteger a relação com um único ponto de atenção dentre os vários possíveis que se apresentam no mundo à volta. A principal função dessa etapa é criar em nós a condição de conhecer o objeto com o qual nos relacionamos, pois, uma vez que só podemos obter um conhecimento não-superficial de algo a partir de uma relação íntima e de longo prazo, a sustentação da atenção unidirecionada é essencial. Ou seja, em primeiro lugar, precisamos resgatar a capacidade de apreciar um objeto específico por um tempo determinado e a partir de uma escolha consciente. Rubem Alves, em seu texto “Escutatória”, trata dessa apreciação, dessa atenção viva e comprometida. Ele cita, como base de reflexão, a seguinte frase de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma”. Que possamos experimentar o sentido das palavras de Caeiro . A apreciação, a escuta, precisa do tempo e do silêncio para completar a sua função, para que seja sentida, absorvida e, ao fim, nos transforme.
  
Ainda assim, “unidirecionamento horizontal” não é tudo. Precisaremos realizar, a partir daí, o que podemos chamar de “redirecionamento vertical”, ou seja, nos mover do envolvimento habitual com objetos externos concretos (fruto da superfície mental sensorial) ao envolvimento com objetos cada vez mais profundos, internos e não-evidentes. Para isso passamos da observação do corpo (ou do mundo externo) à observação da respiração, da observação da respiração à observação da mente. É isso que chamamos de interiorização. A preparação para a interiorização consiste em conseguir diminuir minha resposta às distrações e criar intimidade com um único foco (ainda que o foco pertença ao mundo externo), mas, no seu sentido último, interiorização consiste em relacionar-se intimamente com um foco interno. E qual é o foco interno por excelência? O funcionamento da própria mente. É ela que dá nascimento a nossos pensamentos, desejos, escolhas e ações. Sem a sutil contemplação da própria mente não há liberdade verdadeira, pois liberdade se dá, realmente, quando podemos entender as circunstâncias que dão origem à nossa ação. E as circunstâncias que alimentam nossas ações não são apenas externas, o que podemos facilmente comprovar ao olhar a diferente reação de duas pessoas frente a uma mesma situação rotineira. Só podemos exercer liberdade quando olhamos para dentro e entendemos de onde estão nascendo nossas ações. Muitos dos sistemas contemplativos ou meditativos apresentam a noção de que, na maior parte do tempo, somos prisioneiros da ausência desse entendimento. Apesar de, fundamentalmente, agirmos em busca de paz e felicidade ao longo de nossa vida, muitas vezes não é esse o fruto de nossas ações, pois elas, em sua maioria, não nasceram de uma real compreensão desse desejo fundamental que as embasa. Perturbações internas (imediatistas por natureza) acabam por impelir cegamente o movimento externo gerando, muitas vezes, resultados danosos e impedindo a realização da desejada paz. A conclusão a que chegamos é que não há paz possível quando não somos verdadeiramente conscientes de nós mesmos.

Na comparação de Dennett com as palavras cruzadas, por exemplo, perde-se a compreensão de que o objetivo da meditação é reconhecer o funcionamento da própria mente e não apenas usá-la para exercer uma função cotidiana. Meditação, portanto, não pode ser entendida como um mero exercício da mente, mas sim como a própria contemplação da mente em exercício. Realizar palavras cruzadas não me traz conhecimento sobre mim mesmo, sobre como me estruturo internamente. Uma mente mais hábil é uma das conquistas esperadas no treinamento em meditação, e essa conquista pode até ser positiva, mas não é o propósito final. A mente é entendida como um instrumento de percepção do ser humano e, sendo assim, podemos afirmar que há três formas de utilização da mesma (isso é válido para qualquer instrumento): o não-uso, o uso positivo e o uso danoso. Tornar um instrumento mais “afiado” sem gerar clareza e sabedoria não nos coloca, necessariamente, numa posição melhor. Ao mesmo tempo, ter sabedoria sem ter a possibilidade de utilizá-la, devido à limitação do instrumento que está em nossas mãos, não permite que o conhecimento realize seu propósito.



Jorge Luís Knak – Ago/2013