Há um conceito no yoga chamado “Sagarbha”, palavra do
sânscrito que significa literalmente “com útero”. A prática de conscientização
da respiração (Pranayama) por exemplo, é dividida em Sagarbha e Agarbha (“com
útero” e “sem útero”).
Do ponto de vista da tradição de yoga representada pelo
Prof. T. Krishnamacharya (1888-1989), Sagarbha é considerada a prática mais completa.
O que a diferencia do outro grupo é a presença de uma atitude mental que remete
a uma determinada sabedoria enquanto a técnica é realizada. Um exemplo de
prática Agarbha (sem útero ou sem vida) seria aquela que é realizada puramente
para desenvolver a qualidade de atenção. Isso poderia, em certos casos, ser
feito através de uma prática onde ficamos 20 respirações contando o tempo de
duração de cada inalação e de cada exalação, por exemplo. Já podemos colher
benefícios de uma prática como essa se considerarmos que ela foi corretamente
ensinada e adaptada às características do praticante. Se a realizarmos com
freqüência, podemos esperar por uma certa melhora na qualidade mental, ou seja,
é uma prática que pode ser útil e adequada em muitos casos e é amplamente
utilizada nos meios de yoga que não se limitam apenas ao trabalho com asanas
(físico) ou com dhyana (meditação). A prática Agarbha, portanto, não deve ser
excluída apenas pelo fato de não ser considerada completa, pois tem um papel
importante no desenvolvimento de maior estabilidade e clareza. Porém, o que é
importante compreendermos é que a mera construção de habilidades mentais não
resolve tudo, pelo contrário, pode até causar desequilíbrios e danos. Essa é
uma das razões pelas quais o yoga não acredita na possibilidade de um
aprendizado “auto-didata” no que se refere à prática pessoal e nem apóia a
proliferação de professores sem formação longa e bem embasada. O
desenvolvimento de saúde física, ou de um corpo forte e flexível, não gera
necessariamente resultados positivos, a nível mais amplo, pois podemos usar nossa
força até mesmo para ferir alguém. O mesmo ocorre com o desenvolvimento de
habilidades mentais (maior capacidade de atenção, memória, relaxamento). Sendo
assim, no ensino de yoga existe a preocupação de que todas as habilidades que
estejam sendo nutridas estejam a serviço de ações benéficas ou positivamente
transformadoras. E só podemos reconhecer o que é uma ação benéfica se tivermos
um sólido alicerce de sabedoria.
Considerando que nossa cultura tem como característica
preponderante o valor pelo que é evidente, naturalmente veremos um apego a
técnicas que geram habilidades e falta de questionamento sobre o que faremos
com elas. Porém, a verdade é que técnicas são razoavelmente fáceis de serem
aprendidas e executadas, tão fáceis quanto frágeis. O que leva tempo e exige
comprometimento é o desenvolvimento de discriminação e sabedoria, construção
essa que é tão exigente quanto segura. Um dos textos básicos da filosofia
indiana diz, em seu verso de abertura: “Da perturbação causada pelos três tipos
de sofrimento, surge o intenso desejo de descobrir os meios de eliminá-los. Se
essa busca for considerada supérflua, uma vez que há meios evidentes de
eliminá-los, responderemos que essa afirmação não é correta, porque através dos
meios mais evidentes não há uma cessação definitiva do sofrimento e nem
garantia da não-recorrência do mesmo” (Samkhya-Karika).
Podemos dizer que os “meios mais evidentes” de eliminação da
perturbação e do sofrimento são as distrações ou ações que trazem alívio
momentâneo. Isso não é exatamente uma condenação às várias formas de lazer ou
de caminhos que pacifiquem nossa dor, mas uma lembrança de que não serão elas
que eliminarão de fato a raiz do problema.
A prática Sagarbha (com útero ou com vida) seria, então,
aquela que une o desenvolvimento da habilidade com a presença e a nutrição do
discernimento. Há vários níveis de discernimento importantes para nosso
amadurecimento se olharmos de forma mais terapêutica e ampla, entre eles a
adoção de uma vida menos obcecada por conquistas externas ou a compreensão da
riqueza que é se colocar no mundo como aquele que “oferece” ao invés de se
colocar como aquele que “exige”. E há, também, do ponto de vista mais clássico,
o discernimento que elimina a confusão entre o que é mais essencial e o que é
mais supérfluo. A reflexão sobre esses dois pontos e tudo o que há entre eles é
uma dedicação necessária para toda a vida, pois não nos basta a sabedoria
enquanto teoria, mas sim enquanto experiência, sentimento. Quem sabe possamos
olhar para o conceito de Sagarbha como sendo a atitude presente em todas as
ações do dia, de segunda a domingo, em meio à nossa rotina. Quem sabe seja essa
a real prática de Sagarbha. Ainda assim, em meio a nossas fraquezas e
confusões, melhor que treinemos formalmente essa atitude para que possamos
fortalecer sua presença nos momentos mais desafiantes do dia-a-dia.
Passamos muito tempo acreditando que o resultado mais
visível de nossas ações é que nos garantiria o sucesso, é hora de pensar quão
limitado e “sem vida” é esse sucesso. Se cada ação for realizada com a
aceitação da sabedoria que ela, em si, acabará por nos proporcionar, o sucesso
é certo, apesar de invisível. Que alegria seria se nossas crianças pudessem
receber respingos desse aprendizado já na infância, assim poderíamos, talvez,
abreviar décadas de confusão e frustração que se acumulam através da
experimentação cega dos caminhos “evidentes”.
Jorge Luís Knak – 10/09/2013