Por Jorge Luís Knak
Yoga é uma experiência individual. É dito que é uma
experiência que nasce de nossa conexão com o que há de mais íntimo, mais
interno. Sendo assim, é um caminho solitário. É solitário como a morte, após um
certo ponto ninguém poderá cruzar conosco. Talvez por essa razão o yoga tenha
sido, por muito tempo, erroneamente visto como um processo que exige isolamento
do mundo. Porém, isolar-se do mundo é muito fácil. Isolar-se do mundo é uma
ação externa, e ações externas nunca serão alicerces a quem busca yoga. O
isolamento de que trata o yoga é muito mais essencial do que isso, é isolar-se
da crença de que há um porto seguro a ser encontrado lá fora. Ao longo de nossa
vida os “portos seguros” normalmente vão apenas mudando de lugar, difícil mesmo
é matá-los. Mas, reconhecendo nossa fragilidade e ignorância básica, devemos
considerar que trocar “portos” externos por “portos” mais internos já é um
ótimo sinal de crescimento. Isso ocorre não apenas em níveis mais abstratos ao
longo da vida, mas em aspectos bastante tangíveis também. Quando nascemos
precisamos de alguém “lá fora” para nos dar alimento, para trocar nossas
fraldas, para nos proteger do frio e do calor, ou seja, somos dependentes do
outro. Sem o outro, morremos. Às vezes exercito minha imaginação pensando na
angústia que deve acompanhar uma criança que é abandonada, ainda sem condições
de conseguir alimento. É um exercício doloroso. Durante alguns anos precisamos
do outro, pois é ele que nos garante a sobrevivência. Vamos crescendo e
desenvolvendo habilidades, aprendemos a caminhar e assim passamos a não mais
depender do outro para ir de um lugar ao outro, aprendemos a pegar a comida, a
colocar a roupa, a tomar banho. Um dia, descobrimos que não só sabemos colocar
a roupa, mas também escolher qual colocar, descobrimos que não só sabemos levar
o alimento à boca, mas sabemos escolher qual alimento. Independência, essa é a
direção do ser humano. E essa direção tem algo de sagrado, algo de profundo,
libertador e...solitário.
Ao iniciarmos nossa busca de yoga daremos, provavelmente, os
mesmos passos. É o que se espera. Começaremos desejando um “porto seguro”, algo
lá fora que me garanta tranqüilidade, força ou paz. Surge aí o primeiro possível
obstáculo, acreditamos que alguma outra pessoa será mais importante do que eu
mesma. Ouvi muitas vezes, de várias fontes, a afirmação de que o amadurecimento
depende do aluno e não do professor. E muitas e muitas vezes respondi para mim
mesmo que isso era óbvio. Após alguns bons anos comecei a entender que isso não
era nada óbvio e que eu mesmo não acreditava nisso. Eu ouvia, achava que
entendia, mas, de fato, não acreditava. Eis a irônica dicotomia: após dezenas
de professores martelando nessa afirmação entendi que o professor e seu martelo
não eram tão importantes. O yoga não será encontrado no professor ou no método,
mas no aluno. Pois é o aluno que deseja yoga, aos outros cabe apenas auxiliar e
direcionar. O yoga só será identificado em nós, pois somos nós que o experienciaremos.
Assim como apenas nós mesmos identificamos nossa ignorância, nossas falhas,
nossos medos, somos nós que identificamos nossa paz e nossa sabedoria.
Precisamos encontrar nossas próprias armadilhas e ninguém mais poderá localizá-las
por nós. Há inúmeras histórias de brilhantes alunos, não apenas em yoga, que
receberam a confiança e o ensinamento de grandes professores e que acabaram por
aproveitar o “conhecimento” recebido para causar danos a outros. Essa realidade
nos aponta o precioso ensinamento de que o aluno é que faz a escolha, jamais
haverá uma garantia externa. Podemos nos amargurar, nos debater e dar
justificativas, ao invés de aproveitar para ouvir a confirmação do ensinamento.
Podemos, inclusive, quando vivenciamos casos de abuso de poder e manipulação,
como recentemente aconteceu com um de meus professores, continuar concluindo
que o engano está “lá fora”, na pessoa do professor que seguiu o caminho
errado. Mas não, o engano é meu, sempre que minha escolha é seguir o caminho da
manipulação, do medo, do apego. E assim é para cada um de nós. Quando pararmos
de brigar com as falsas frustrações e entendermos que elas apenas nos
esclarecem ainda mais onde está o yoga, quando percebermos que não podemos
descobrir se há yoga no outro, mas apenas podemos perseguir yoga em nós mesmos,
estaremos mais próximos de uma caminho verdadeiro. Eu preciso olhar para
dentro, mesmo na presença do mais “perfeito” professor. Eu preciso olhar para
dentro, mesmo na presença do mais “ignorante” professor. Mantendo esse olhar,
ao continuarmos nossos caminhos, não perderemos a nós mesmos e descobriremos as
nossas verdades. Algumas verdades podem até vir na forma de ensinamentos
externos (que vem de outra pessoa ou de alguma situação), mas ela só nos transforma
após o nosso próprio processo de digestão e assimilação. O “porto seguro” não
está lá fora, ele é justamente aquilo que há de mais íntimo, mais interno.
A reflexão que eu trouxe acima é, também, a base para um questionamento
mais amplo sobre as linhagens de yoga e de outras tradições orais. Tradição
oral significa um aprendizado que ocorre numa relação viva entre professor e
aluno, já as linhagens são a continuidade ininterrupta dessas tradições
específicas ao longo de muitos séculos. Essa “linha” contínua de
professores-alunos-professores será a responsável para que esses ensinamentos
permaneçam vivos e trazendo benefícios a muita gente em todas as épocas. A
manutenção desses ensinamentos, se corretamente realizada, permitirá que a
semente do conhecimento esteja disponível para gerações futuras, permitindo até
mesmo que alunos futuros superem a clareza de seus professores. Mas como isso
ocorre? Como pode o ensinamento ficar intacto mesmo em meio a todas as
imperfeições humanas, ou seja, aos inevitáveis enganos dos professores e
alunos? Como diferenciar o professor do ensinamento? Só poderemos diferenciar
se soubermos realmente quem é o professor e quem é o ensinamento, ou seja, se
tivermos uma linhagem mais sólida (com vários professores). Uma tradição frágil
é aquela que depende de apenas um aluno em sua sucessão, ou seja, não há mais
outra pessoa que tenha tido acesso aos ensinamentos. Krishnamacharya dizia que
um professor deveria passar todo o seu conhecimento a “pelo menos” um aluno.
Quanto mais o ensinamento ficar nas mãos de um único sucessor, mais riscos
estarão presentes, pois dependeremos completamente da saúde física e mental
dele. Uma das tradições orais que mais me impressiona, nos tempos atuais, em
sabedoria, é a tradição budista tibetana. Apesar de eu ser um praticante e
professor de yoga, não vejo nenhuma tradição de yoga com uma solidez que se
aproxime do budismo. E, mesmo em meio à tradição budista, também veremos
inúmeros casos de corrupção e assédio. Também veremos isso no Cristianismo e
nos outros ismos, não faltarão exemplos. Os fatos nos apontam incansavelmente
ao ensinamento: os erros humanos estarão lá, por mais que consideremos um
ambiente “sagrado” ele acabará por nos apontar também o “humano”. E, graças àqueles
que se dedicaram a algo maior do que seus próprios umbigos, o conhecimento
continuará preservado.
Apesar da presença constante de apegos e de ignorância
humana, não serão a ignorância e o apego que embasarão uma linhagem. Os enganos
humanos podem até mesmo esconder temporariamente os ensinamentos, mas se
houverem pessoas se dedicando à solidez das grandes tradições de conhecimento, eles
estarão sempre disponíveis. A morte e a doença sempre existirão e levarão
professores sábios, a ignorância sempre existirá e destruirá professores
inaptos. Que possamos ouvir esses ensinamentos e manter o foco naquilo que
trará benefícios mais permanentes a todos que buscarem o yoga no presente e no
futuro distante.
2 comentários:
Há algum tempo venho refletindo sobre o relacionamento entre o professor e o aluno, e tenho percebido cada vez mais, que o Yoga está no praticante, pois é ele que tem o "poder" de fazer as ações nescessárias para mudar a direção (que é determinada pelo professor - conhecedor do aluno).
Grata pela reflexão!
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